Marco na economia brasileira, o Plano Real completa 30 anos nesta segunda-feira, dia 1º de julho. Foi neste dia que entrou em circulação o real, moeda que pôs fim ao processo de hiperinflação que assolou o país desde a década de 1980. Não foi da noite para o dia, porém, que o brasileiro se viu livre do aumento desenfreado dos preços.
Depois de cinco planos frustrados para tentar domar o “dragão da inflação”, um grupo de economistas implementou uma série de medidas durante o governo de Itamar Franco, em 1994, até que os preços estabilizassem no país.
Entenda a seguir o que foi o Plano Real, como ele se difere dos anteriores e por quê ele deu certo:
O que foi o Plano Real?
O Plano Real foi um conjunto de medidas econômicas implementadas durante o governo de Itamar Franco, em 1994, com o objetivo de conter a hiperinflação (processo de escalada extrema dos preços). Eleito vice em 1989, Itamar assumiu a presidência em outubro de 1992, quando o então presidente Fernando Collor sofreu impeachment em meio a denúncias de corrupção no seu governo.
Entre economistas, se convencionou classificar que um país passa pelo processo de hiperinflação quando a alta de preços supera 50% ao mês. No período mais crítico, o Brasil chegou a registrar inflação de 82% ao mês, em março de 1990, segundo o IBGE.
— Chegamos a ter inflação de 2,5% ao dia. As pessoas recebiam o salário e saíam correndo pra comprar alguma coisa. O dinheiro estava perdendo todo o seu valor. A grande inflação leva a uma desorganização na economia e a sociedade aceita qualquer coisa pra acabar com ela — resume Simão Silber, professor do Departamento de Economia da FEA/USP e pesquisador da Fipe.
Por que foi criado o Plano Real?
O Brasil começou a sofrer uma escalada sistemática dos preços a partir da década de 1980. Isso depois de um período de crescimento do PIB e inflação controlada durante o chamado “milagre econômico”, na ditadura militar, entre 1968 e 1973.
O economista André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, explicou em seminário da PUC Rio que a inflação no Brasil estava relativamente controlada por conta das reformas de estabilização no governo militar, mas saiu do eixo, principalmente, a partir da segunda crise do petróleo, em 1979.
Naquela época, o início da guerra entre Irã e Iraque fez o preço do barril de petróleo disparar, afetando custos de produção e outros preços ao consumidor no mundo todo. A dívida externa brasileira e a inflação dispararam, levando o governo a buscar diferentes medidas para combater o surto inflacionário.
Foram cinco tentativas de estabilização dos preços até surgir o Plano Real. O primeiro deles foi o Plano Cruzado (1986), seguido dos Planos Bresser (1987), Verão (1989) — os três durante o governo de José Sarney —, Collor I (1990) e Collor II (1991) — no governo Collor.
A maioria dos planos tinha como base o congelamento dos preços, mas ao longo do tempo descobriu-se que a medida não era eficiente para combater a inflação. O Plano Collor deixou traumas na população ao confiscar o dinheiro que as pessoas tinham depositado em conta corrente e na caderneta de poupança.
Qual foi a diferença do Plano Real? E por que ele deu certo?
Para economistas, parte do sucesso do Plano Real se deve à criação da Unidade Referencial de Valor (URV), espécie de moeda virtual (leia abaixo o que foi a URV), que conseguiu dar fim à indexação, uma jabuticaba da economia brasileira. Além disso, o novo pacote econômico incluiu outras medidas de estabilização e não recorreu a condutas tão drásticas quanto as anteriores de congelamento de preços e confisco de poupança.
Os dois primeiros planos, adotados no governo Sarney, incluíam o congelamento de preços e os chamados “gatilhos salariais” (reajustes automáticos dos salários sempre que a inflação acumulada alcançasse 20%).
Houve também duas mudanças de moeda para tentar controlar a inflação e diante do fato de que o dinheiro perdeu tanto o valor que era preciso várias cédulas para comprar produtos baratos. Em menos de três anos — entre fevereiro de 1986 e janeiro de 1989 — o país teve três moedas diferentes.
Mudou do cruzeiro para o cruzado, no Plano Cruzado de 1986, e do cruzado para o cruzado novo, no Plano Verão de 1989.
Com o Plano Cruzado, que congelou os preços, o governo Sarney alcançou grandes índices de popularidade. O presidente incentivava a população a fiscalizar se o tabelamento de preços estava sendo cumprido.
Naquela época, o governo fixava os preços por meio de uma tabela publicada diariamente pela Superintendência Nacional do Abastecimento (Sunab). Daí surgiram as “fiscais do Sarney”, donas de casa que checavam nos supermercados se os preços estavam sendo cumpridos.
Apesar dos esforços, a inflação não ficou controlada por muito tempo. O congelamento de preços levava a distorções de mercado, causando desabastecimentos e até mercados paralelos.
E criou cenas inusitadas, como o episódio no qual o governo mandou policiais federais irem confiscar bois no pasto diante da escassez de carne nos supermercados — os pecuaristas preferiam deixar de vender diante dos preços artificialmente baixos do congelamento.
— As pessoas estocavam muito (alimento). E, depois que o primeiro congelamento não deu certo, os lojistas subiam seus preços com receio de outro congelamento lá na frente. Era uma inflação viciada. Os preços têm a ver com o psicológico das pessoas — diz Eulina Nunes, economista e ex-coordenadora de Índice de Preços do IBGE.
O pacote estabeleceu que 80% do dinheiro aplicado em cadernetas de poupança, contas correntes, fundos de renda fixa e investimentos overnight (aplicações financeiras com rentabilidade diária e que eram muito usadas pela classe média diante da escalada da inflação) ficassem retidos no Banco Central por 18 meses.
A medida reduziu temporariamente a inflação, mas o confisco provocou instabilidade econômica e elevou os preços no país novamente. A economia entrou em recessão e corroeu a popularidade do presidente Collor, que acabou sofrendo impeachment em 1992 em meio a denúncias de corrupção.
Como funcionou o Plano Real?
O vice-presidente Itamar Franco assumiu a presidência após a saída de Collor e, com a adesão do PSDB ao governo, nomeou Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda. FHC trouxe para sua equipe um grupo de economistas que já discutiam, na PUC-Rio, universidade de onde muitos eram oriundos, o que seria o embrião do Plano Real.
Entre os nomes estavam André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan e Pérsio Arida. Fernando Henrique saiu do governo antes do lançamento da nova moeda, para se candidatar à presidência e, graças à popularidade do Plano Real, foi eleito em 1º turno com 55,22% dos votos, contra 39,97% de Lula. O diplomata Rubens Ricupero assumiu o ministério após a saída de FHC.
O Plano Real foi desenvolvido por meio de três grandes fases:
- Reformas fiscais e monetárias
- Criação da Unidade Real de Valor (URV) como índice para estabilizar preços
- Introdução do real como nova moeda em circulação, com uma âncora cambial
A renegociação da dívida externa
O Plano Real só foi bem sucedido porque, antes da adoção da URV — e, depois, da nova moeda real -— o Brasil renegociou sua dívida externa. O país havia decretado moratória em 1987, ainda no governo Sarney.
Com isso, tinha acesso precário a financiamento internacional — o que tornaria inviável adotar um plano de estabilização da economia.
O governo brasileiro então renegociou a dívida externa do país, que estava nas alturas, antes de lançar o Plano Real. Silber, da FEA USP, lembra que ao menos 42 países se endividaram nos anos 1980 e não conseguiam pagar suas dívidas externas. Por meio do plano Brady, junto ao Tesouro dos Estados Unidos, eles quitaram seus débitos.
Na época, o principal negociador brasileiro foi Pedro Malan que, mais tarde, quando Fernando Henrique Cardoso virou presidente, se tornou ministro da Fazenda.
— O peso da dívida externa literalmente desapareceu. Hoje ninguém discute dívida externa do governo, só interna — diz o economista.
O ajuste das contas públicas
A primeira grande etapa do Plano ocorreu em junho de 1993 com o Programa de Ação Imediata (PAI), conjunto de medidas que visavam a redução e ganho de eficiência dos gastos da União. Houve um forte ajuste nas contas do governo, incluindo recuperação de impostos federais, saneamento dos bancos estaduais e projetos de renegociação das dívidas estaduais e municipais.
A dívida dos estados foi também federalizada. Portanto, os estados que se endividaram demais teriam a arrecadação de impostos estaduais bloqueada pelo governo. Isso, segundo analistas, melhorou o problema fiscal do país e trouxe certa estabilidade às “regras do jogo”.
O que foi a URV?
A segunda grande fase do Plano Real foi a criação da Unidade Referencial de Valor (URV), lançada em 1° de março de 1994. Uma espécie de índice que auxiliou na transição do cruzeiro para o real, evitando que fosse carregada a inflação passada para a nova moeda.
A URV buscou resolver o dilema do reajuste automático (indexação) que se arrastava desde a década de 1960 no país. Antes da URV, a inflação anterior era carregada para a inflação futura por meio da indexação da economia brasileira, que realizava reajustes automáticos de preços, contratos e salários. A indexação surgiu como uma forma da sociedade se proteger da inflação, mas criava um ciclo vicioso de aumento de preços — a chamada “inércia inflacionária”.
Para interromper essa alta dos preços, foi sugerida a URV como um novo índice. Ela tinha um valor que não mudava com a inflação no dia seguinte, mas sua taxa de conversão (de cruzeiro real para URV) era ajustada diariamente pelo governo para refletir o aumento de preços.
A solução foi tida como inovadora entre economistas. Países vizinhos ao Brasil, como a Argentina, haviam adotado, em seu período de hiperinflação, o dólar como reserva financeira da população. Não conviviam com a indexação.
“O Brasil foi original: diante do mesmo problema, a solução foi preservar o valor dos ativos financeiros por meio da correção monetária”, disse Pérsio Arida, em livro de entrevistas do Banco Central.
Por isso, na Argentina, quando houve um plano de estabilização da economia — o Plano Cavallo, no início dos anos 1990 — a opção foi adotar uma âncora cambial direta, permitindo a conversão do peso ao dólar. No Brasil, a URV era ancorada no câmbio, mas com mais flexibilidade (lei abaixo como foi a âncora cambial)
Na prática, como funcionava a URV?
A URV não era uma moeda física que as pessoas podiam comprar ou carregar na carteira, mas ela servia como unidade de conta para facilitar a transição para o real. Sua cotação em cruzeiros reais (moeda da época) era ajustada diariamente. Quando foi lançada, uma URV era equivalente a CR$ 647,50.
Funcionava assim:
- Produto: Se um item custava CR$ 647,50, podia ser cotado como 1 URV
- Pagamento: As pessoas continuavam pagando em cruzeiros reais, mas os valores eram baseados na conversão para URV
Na prática, os preços em cruzeiros reais continuavam a subir devido à inflação. Se no lançamento da URV um produto custava CR$ 647,50, ou uma URV, no dia seguinte, por exemplo, poderia custar CR$ 654,98 devido à inflação. Mas seguiria custando uma URV. Para saber o preço dos produtos, era preciso converter diariamente cruzeiros reais em URVs.
Ou seja, o cruzeiro real ia perdendo valor. Enquanto isso, os preços em URV permaneciam constantes. Quando a URV foi convertida no real e a nova moeda entrou em circulação, em 1º de julho, deixou de carregar a inflação passada.
— Essa foi a grande sacada porque o governo não impôs nada. Ele só comunicou: se você quiser reajustar preços, contratar ou comprar mercadoria com base na variação da URV, você pode. E a vantagem era que o valor mudava todo dia em função da moeda na época — diz Silber.
Em julho de 1994, quando a URV passou a valer CR$ 2.750, a Unidade Real de Valor desapareceu como indexador e se tornou a moeda “real”, dando início à última fase do plano.
A estratégia da âncora cambial
Para dar sustentabilidade ao real, o governo brasileiro atrelou a URV ao dólar americano em 1994. Assim, quando foi lançada, uma URV valia US$ 1. O objetivo era estabilizar a moeda e controlar os preços, fazendo com que as pessoas confiassem que o real teria um valor estável.
Assim, ao “importar” a estabilidade dos Estados Unidos, o Brasil conseguiu domar a hiperinflação. Segundo o IBGE, a inflação que estava em quase 5.000% em 12 meses até junho de 1994 (um mês antes do lançamento do Real) caiu para cerca de 30% um ano depois.
Para dar sequência à estabilização de preços e evitar choques futuros, o governo adotou outra estratégia em março de 1995: a banda cambial. Assim, o real podia se valorizar ou se desvalorizar em relação ao dólar dentro de um intervalo permitido pelo governo.
O Banco Central poderia intervir para evitar que a taxa de câmbio ultrapasse os limites superior e inferior da banda, comprando ou vendendo reservas internacionais no mercado financeiro.
Após vários choques externos, com a crise mexicana (1994), asiática (1997) e russa (1998), o Brasil vinha perdendo muitas reservas internacionais. Estava ficando insustentável manter o regime de bandas cambiais.
Foi então que, em janeiro de 1999, logo após a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo abandonou de vez a âncora cambial e instituiu o regime de câmbio flutuante, tal como é hoje. A taxa de câmbio é determinada pelo mercado e as intervenções do Banco Central são pontuais para evitar flutuações excessivas.
Adotou-se então uma nova estratégia para manter os preços sob controle: o regime de metas de inflação, com o Banco Central calibrando a taxa básica de juros da Economia para mais ou para menos em momentos de inflação em queda ou em alta, que vigora até hoje.
‘Tudo na economia depende da credibilidade’
Para Eulina, parte do sucesso do Plano Real é explicada pela implementação de forma gradual.
— Não foi como os anteriores, onde o governo dizia “A partir de amanhã o dinheiro está confiscado ou os preços congelados”. Foi um plano anunciado. As pessoas foram tomando confiança e se acostumando, entendendo o que era e aceitando essa nova moeda. Tudo na economia depende da credibilidade.
Fonte: O Globo
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