O Projeto de Lei (PL) nº 4/2025, apresentado pelo então presidente do Senado Rodrigo Pacheco, pretende realizar a mais ampla revisão do Código Civil desde sua entrada em vigor, em 2002. O texto se baseia em um anteprojeto, elaborado por uma comissão de juristas instituída em 2023 e presidida pelo ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O grupo contou com a participação de magistrados, professores, advogados e propôs uma atualização abrangente, supostamente, para fazer frente às transformações digitais e tecnológicas da vida civil contemporânea. Veja um quadro resumo com os pontos-críticos do projeto no Novo Código Civil.
O resultado, porém, impressiona: o PL altera ou revoga cerca de 1,1 mil artigos do Código Civil e inclui mais de 300 novos dispositivos, o que representa na verdade reescrever mais da metade do codex civil vigente. A amplitude das mudanças pretendidas, somada ao subjetivismo adotado em diversas alterações relevantes, vem gerando críticas intensas no meio jurídico e acadêmico.
A primeira preocupação é de natureza sistêmica. O Código Civil de 2002 levou mais de duas décadas para ser elaborado, analisado e votado pelo Congresso Nacional, um processo necessário de atualização e modernização do normativo de 1916. O então batizado “Novo Código Civil”, sancionado em 2002, levou outros mais de vinte anos para ganhar interpretação consolidada nos tribunais e na doutrina.
Substituir de forma abrupta mais da metade de seus dispositivos pode quebrar a coerência e a segurança sistêmica construída ao longo de décadas, além de inaugurar um longo período de incerteza interpretativa, um risco alto para o ambiente de negócios e para a estabilidade institucional brasileira, justamente quando o país precisa de previsibilidade.
Conceitos vagos e ativismo interpretativo
Entre os pontos mais questionados da proposta está a ampliação (ou a criação) de cláusulas gerais – como “boa-fé”, “ordem pública” e “confiança legítima” – em diversos dispositivos do Projeto de Lei. Não obstante a importância dos conceitos no sistema civil contemporâneo, a sua multiplicação sistêmica sem parâmetros concretos pode abrir espaço para um ativismo interpretativo incompatível com a segurança jurídica, além de uma porta perigosa para a judicialização de praticamente todas as relações jurídicas.
Como observa Judith Martins-Costa, a vagueza excessiva de tais cláusulas “desloca o centro normativo do Legislativo para o Judiciário”, permitindo que juízes definam o conteúdo das obrigações caso a caso. O resultado é previsibilidade reduzida, decisões contraditórias e o aumento da litigiosidade, gerando um natural acréscimo nos custos de transação no Brasil.
Contratos
Pode-se afirmar que a relativização dos negócios jurídicos no Brasil é um problema histórico, agravado por legislações e posições jurisprudenciais que sempre desprezaram a força – e a importância – dos contratos, a pretexto de proteger os contratantes hipossuficientes. É incontestável que o excesso de normas protetivas gerou uma cultura perigosa de inobservância dos negócios jurídicos no Brasil.
O PL agrava ainda mais o cenário, na medida em que propõe ampliar as hipóteses de inobservância de cláusulas contratuais que contrariem a ordem pública, a boa-fé, a função social, a confiança e a probidade. Além de ampliar, com perigoso subjetivismo, as exceções ao basilar e estrutural princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser observados/cumpridos), o texto ainda estabelece que a revisão judicial dos negócios jurídicos passa a ser a regra nos contratos celebrados entre partes em posição de desigualdade.
As mudanças propostas acima são perigosas e possuem uma consequência devastadora: as pessoas não vão mais respeitar contratos no Brasil e fatores como a excessiva intervenção judicial nos negócios e a insegurança jurídica – que já inviabilizam ou encarecem os investimentos no país – passam a ser uma premissa institucionalizada e “cravada” na principal codificação do sistema jurídico brasileiro.
Responsabilidade Civil
O texto também propõe diversas mudanças nas regras sobre responsabilidade civil, com destaque para a criação de indenizações com função “pedagógica” – uma espécie de “dano punitivo” – que, pela proposta do Projeto de Lei, pode ser fixado pelo magistrado em até quatro vezes o valor do dano moral.
Provavelmente a intenção da comissão (composta por diversos juristas com histórico de luta pelos diretos dos consumidores) foi de reforçar valores éticos nas relações privadas, mas o efeito pode ser contrário: maior incerteza, excesso de judicialização e risco de condenações desproporcionais e repletas de “populismo jurídico”.
Incentivos à “hiperjudicialização”
Atualmente, o nosso ambiente jurídico já disponibiliza ao cidadão um farto “cardápio” de incentivos para a judicialização, especialmente: (i) a ausência de critérios objetivos para a concessão de assistência judiciária gratuita, (ii) a inexistência de um sistema de precedentes organizado, coeso e coerente (no âmbito dos próprios tribunais e entre os tribunais superiores e os demais), (iii) a irresponsabilidade processual caracterizada pela litigância abusiva e (iv) a ausência de um ambiente que incentive a solução preventiva, extrajudicial e pacífica de litígios.
Por incrível que possa parecer, o PL nº 4/2025 vai agravar exponencialmente o problema da judicialização no Brasil, podendo causar uma verdadeira ruptura institucional decorrente do colapso do Sistema de Justiça.
Além das inúmeras propostas que trazem conceitos abertos e uma linguagem imprecisa para artigos que regulamentam institutos fundamentais para a vida civil – especialmente as regras que regulamentam os contratos – o Projeto de Lei expande o conceito de dano para fins de indenização, acrescentando os danos indiretos, futuros, probabilísticos, estatísticos e punitivos, ou seja, um prato cheio para a litigância predatória que afeta principalmente as instituições financeiras, o varejo, a telefonia, as empresas aéreas e os planos de saúde.
Em um movimento legislativo totalmente incoerente com os recentes precedentes do STF e do STJ sobre a aplicação da Selic como a taxa a ser aplicada como juros legais – e antagônico com a novíssima lei que pacificou o tema ao incluir a regra no Código Civil (Lei 14.905/24) – o PL também propõe uma nova regra sobre juros legais, que voltaria a ter uma taxa fixa de 1% ao mês.
Finalmente, a proposta ainda estabelece que, em caso de sucumbência nas ações judiciais, o perdedor arcará com os honorários sucumbenciais (devidos ao advogado do vencedor) e os honorários contratuais (estabelecidos livremente entre advogado e a parte). Como os agentes econômicos reagem a incentivos, certamente teremos pouquíssimos causídicos atraídos por soluções extrajudiciais e pacíficas de solução de litígios.
Impactos econômicos e institucionais
Em termos econômicos, o projeto causa efeitos imediatos. Setores que dependem de previsibilidade contratual – como infraestrutura, mercado financeiro, imobiliário e de seguros – tendem a sofrer com o aumento de riscos regulatórios e dos custos de transação. A incerteza interpretativa também repercute sobre o custo e o risco do crédito e a avaliação de garantias contratuais, impactando diretamente a sociedade que depende de financiamento para viabilizar projetos pessoais importantes.
Do ponto de vista institucional, há um evidente desequilíbrio potencial entre os Poderes, já que ao rechear o texto com conceitos abertos e cláusulas morais, o Legislativo transfere ao Judiciário a função de interferir desnecessariamente nas relações entre particulares, além de definir políticas públicas por meio de decisões judiciais.
Modernizar com prudência
É evidente que o nosso Código Civil precisa dialogar com a era digital e com novas formas de sociabilidade e de consumo. Todavia, um movimento de modernização deve ser feito com cuidado e precisa preservar o que há de mais valioso em uma codificação tão relevante: a estabilidade, a previsibilidade, a coerência e a segurança jurídica.
Reformar mais da metade das regras de um código em vigor há apenas duas décadas, sem um período de transição e sem que haja uma ampla participação pública, é transformar um suposto esforço de modernização em (mais uma) causa de insegurança normativa no Brasil.
A sociedade precisa participar ativamente dos próximos passos do PL nº 4/2025 no Congresso Nacional. O cronograma prevê audiências públicas que serão realizadas até dezembro de 2025 e a votação do Projeto está prevista para ocorrer em julho de 2026, em pleno ano de eleições. É um tempo incrivelmente exíguo para se discutir aproximadamente 1.400 artigos (modificados ou criados) que impactam simplesmente todas as relações civis.
É necessário que haja um alinhamento institucional, nunca visto entre os diversos setores da economia, para evitar um retrocesso normativo relevante, que certamente irá impactar negativamente o ambiente de negócios no Brasil pelas próximas décadas. Lembrando que no direito civil, como na economia, a confiança é o ativo mais difícil de reconstruir.
Por Guilherme Freitas – Advogado
Fonte: JOTA
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