A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) enviou uma carta ao governo brasileiro contestando as regras do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que julga disputas bilionárias entre empresas e a União sobre pagamento de impostos.
Segundo a entidade, conhecida como “clube dos países ricos”, o modelo do órgão não tem paralelo no mundo pelo grau de participação dos entes privados nas decisões.
A OCDE, cujos membros se comprometem com o cumprimento de boas práticas para seus governos e economias, afirma que uma forma de mitigar problemas —como o potencial conflito de interesses nos julgamentos— é recriar o chamado voto de qualidade (que dá a um representante do governo o poder de desempate).
A carta fortalece a posição do ministro Fernando Haddad (Fazenda), que enviou ao Congresso em janeiro uma MP (medida provisória) recriando o voto de qualidade –que havia sido extinto em 2020 com aval dos parlamentares. Atualmente, a iniciativa do chefe da equipe econômica corre riscos de ser revertida ou desidratada em meio à resistência de congressistas.
Em entrevista à Folha, Haddad afirma que as considerações feitas pela OCDE são duras e mostram como as regras adotadas para o Carf em 2020 causam estranheza no mundo. Ele diz que todos os parlamentares vão receber o texto enviado pela entidade.
“Me parece um escândalo essa questão estar ainda sendo objeto de protesto de lobistas. Bolsonaristas e lobistas estão ativos em relação a isso”, afirma o ministro. “Isso é fruto do patrimonialismo brasileiro, que se apossa do Estado e não quer abrir mão de seus privilégios. É uma excrescência”, diz.
Para o chefe da equipe econômica, a situação pode até mesmo colocar em risco o processo de adesão do país à organização. “Praticamente inviabiliza a entrada do Brasil na OCDE. Nenhum empresário sério vai investir em um país com uma regra que o próprio Tribunal de Contas [da União] diz que é fonte potencial de corrupção”, afirma.
Haddad não descarta também propor uma mudança mais ampla para o Carf, levando em conta os outros pontos abordados pela OCDE –como a falta de juízes de carreira no órgão. “Estamos começando um processo de saneamento. Vamos corrigir o que é mais escandaloso e depois, com mais calma, nos debruçamos sobre eventuais aperfeiçoamentos”, afirma.
As mudanças propostas pelo ministro para o Carf integram um amplo pacote de ajuste fiscal anunciado em janeiro com potencial de melhorar as contas públicas em até R$ 242,7 bilhões.
Após serem enviadas por meio de MP, as mudanças propostas pelo governo para o tribunal administrativo devem ser transformadas em um projeto de lei a ser enviado pelo Executivo nos próximos dias. A alteração foi decidida após uma disputa no Congresso pelo rito de tramitação das MPs –já que o governo recebeu o alerta de que, caso nada fosse feito, dificilmente o texto do Carf seria aprovado na Câmara.
A carta da OCDE tem a assinatura de Grace Perez-Navarro, diretora do Centro de Política e Administração Tributária da OCDE, e data de 31 de março. Ela foi enviada ao Ministério da Fazenda após uma reunião com Haddad no começo daquele mês em que foi discutida uma série de temas –entre eles, justamente o processo de recursos contra a cobrança de impostos.
Ela afirma que a OCDE fez uma pesquisa sobre o tema e concluiu inicialmente que entre os países examinados até há algum tipo de processo de apelação administrativa sobre discussões tributárias –mas não um que envolva representantes do setor privado no processo de revisão da tomada de decisão.
“Em vez disso, as revisões são realizadas por funcionários do governo da administração tributária ou do Ministério das Finanças”, diz a diretora.
O levantamento da entidade identificou até agora apenas três jurisdições com diferentes graus de envolvimento do setor privado no recurso administrativo em matéria tributária (Dinamarca, Noruega e Finlândia). Nesses casos, diz a OCDE, “os representantes do setor privado não parecem ter o mesmo papel decisivo no recurso administrativo que têm no Brasil”.
Ela relembra que a mudança na legislação brasileira em 2020 (que extinguiu o voto de qualidade) fez com que casos de empate na votação entre representantes do setor privado e do setor público se tornassem automaticamente favoráveis às empresas.
A Fazenda é impedida de levar os grandes temas tributários após derrota no Carf à apreciação dos tribunais, inclusive do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça) –responsáveis por fixar a interpretação da legislação federal e da Constituição (respectivamente).
Ou seja, a decisão contrária ao contribuinte poderia ainda ser contestada na Justiça –mas a decisão contra a administração tributária, não. A assimetria também é criticada pela OCDE.
“Isso parece inapropriado, porque, se a decisão resultar de um empate, indica que há algumas questões legais desafiadoras que provavelmente merecem ser mais esclarecidas e resolvidas por meio de um processo judicial independente”, afirma Perez-Navarro.
Ainda segundo a OCDE, a decisão final e definitiva em um caso tributário de grande valor não seria normalmente tomada por uma equipe composta por juízes leigos, em que os votos dos representantes do setor privado têm peso decisivo.
“Onde os representantes do setor privado estão envolvidos na revisão administrativa ou judicial, o processo é, em última análise, supervisionado por juízes profissionais de carreira, incluindo os juízes do Supremo Tribunal que terão a palavra final”, afirma a entidade.
A entidade também cita a longa duração do processo, com a possibilidade de as empresas empregarem estratégias protelatórias sem a obrigatoriedade de pagamento de qualquer imposto ou garantia em meio às discussões.
A OCDE ainda afirma que as considerações, em conjunto com outras questões ligadas ao Carf, representam um desafio fiscal significativo para o país e que a volta do voto de qualidade seria justificada. “Isso não terá um impacto negativo sobre os direitos dos contribuintes porque eles ainda terão seu recurso à revisão judicial independente”, afirma a entidade.
Fonte: Folha de S. Paulo
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