Nas COPs, conferências do clima da ONU (Organização das Nações Unidas), de Glasgow (2021) e Sharm el-Sheikh (2022), o Brasil passou por uma situação inusitada. Foi o único país a ter dois pavilhões —um oficial e outro, o chamado Brazil Hub, reunindo ambientalistas, empresários, acadêmicos e políticos que não queriam frequentar um espaço coordenado pelo governo Jair Bolsonaro (PL).
Depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), muitos dos que frequentavam o Brazil Hub pularam o balcão e foram para o governo. Mesmo assim, falta ambição em nossa agenda ambiental.
A avaliação é de Gustavo Pinheiro, um dos maiores especialistas brasileiros em finanças da transição climática. Ele frequentou o Brazil Hub como integrante do iCS (Instituto Clima e Sociedade), uma das principais instituições filantrópicas brasileiras no combate às mudanças climáticas –mas não pulou o balcão. Hoje integra a equipe da E3G (Third Generation Environmentalism), centro de estudos internacionais da área.
Pinheiro falou à Folha sobre o que falta ser feito para que o Brasil se torne um líder ambiental –e como, em sua opinião, isso pode ser benéfico para a economia do país.
Uma equipe de alto nível reunindo vários atores da sociedade civil se formou nas últimas COPs em oposição ao governo Bolsonaro. Muitos desses atores hoje estão no governo Lula, mas o país ainda patina na área ambiental. Por que isso acontece?
A minha avaliação é que o governo Lula é uma colcha de retalhos —ou, como vocês dizem em Portugal, uma geringonça. Nessa grande coalizão, há a sociedade civil preocupada com a questão climática, mas também setores e grupos de interesse relacionados a combustíveis fósseis, e também setores ou grupos com interesses escusos ou não republicanos.
Lula, como é tradicional dele, tenta evitar as escolhas difíceis. Não é só uma característica do Lula, mas de todo líder político, que tenta evitar as notícias desagradáveis.
A transição energética é uma notícia desagradável?
É uma notícia desagradável para os setores que vão ter que fazer o “phase out”, a transição de combustíveis fósseis. De carvão, que no caso do Brasil é minoritário, e de petróleo —que tem sido, enfim, uma maldição tardia, porque o Brasil encontrou grandes reservas de óleo de qualidade muito tarde, quando a agenda de descarbonização já estava colocada.
Há também o gás, em relação ao qual há uma narrativa de “combustível de transição”, que não se sustenta em função do limitado orçamento de carbono que o mundo ainda tem. Já estamos em 1,5°C, que é a meta indicada no Acordo de Paris e que o governo brasileiro abraçou como mote para a COP30 em Belém.
Então, o Brasil abraça essa meta na geopolítica da diplomacia climática, mas não alinha ainda as políticas domésticas.
Durante o segundo governo Lula, o Brasil achou petróleo no pré-sal. Lula saiu, voltou e o Brasil encontrou petróleo de novo. Até que ponto o governo se deixou levar pela empolgação e deixou de lado a agenda ambiental?
Eu acho que a questão é mais profunda e ela realmente reflete uma dicotomia de interesses que não são conciliáveis. Não é conciliável emitir gases de efeito estufa com exploração de combustíveis fósseis e limitar o aquecimento global a 1,5°C.
Se tudo isso se confirmar, o Brasil, de acordo com os planos governamentais, salta de 50 milhões de barris para algo na casa dos 260 milhões de barris, vai para quarto maior exportador de petróleo do mundo até 2030, e vira uma Arábia Saudita —o que é absolutamente incompatível com o compromisso internacional que o Brasil quer levar para a COP30.
Alguns integrantes do governo reproduzem o discurso comum a vários presidentes latino-americanos, segundo o qual países do Norte Global enriqueceram com petróleo e agora é nossa vez.
É um discurso antigo, que vem desde os primórdios das negociações climáticas, com o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas —onde, em tese, países que têm mais responsabilidade histórica e mais capacidade de agir têm que agir mais. E ele se aproveita de um fato que é inquestionável, de que o mundo desenvolvido, os países do G7, não estão fazendo a sua parte.
Países em desenvolvimento, mercados emergentes, usam isso como um escudo para também não fazerem nada.
O Brasil entrou nessa corrente?
Há uma diferença muito grande entre o Brasil e outras economias em desenvolvimento, seja o México, seja a Arábia Saudita, ou outros membros do G20, incluindo a Índia e a China.
A maior parte desses países são muito dependentes de combustíveis fósseis na sua matriz energética e elétrica. Já o Brasil tem 80% da matriz elétrica e 60% da matriz energética vinda de fontes renováveis.
E a gente tem um diferencial comparativo muito forte, pois nossas fontes renováveis —eólica, solar e biomassa— já são as três fontes mais baratas.
Fazer a transição, então, está dentro de uma lógica de mercado?
Sim. O Brasil está fazendo um planejamento energético que deixa de lado a modicidade tarifária, porque ela fatalmente iria nos empurrar para uma transição acelerada para renováveis, e está começando a criar políticas que não fazem nenhum sentido numa perspectiva econômica, com o objetivo de beneficiar a entrada de mais combustíveis fósseis na matriz energética e elétrica, atrasando a transição.
Isso é ruim para os consumidores e para a competitividade da economia brasileira —nossa energia vai ficar mais cara. As energias renováveis tornariam todo o nosso parque industrial mais competitivo, porque energia é um insumo importantíssimo na indústria moderna, e hoje a nossa energia está cara.
O que a gente está vendo atualmente é o setor industrial saindo do sistema integrado nacional e migrando quase na sua totalidade para o mercado de energia livre, onde ele vai lá e adquire direto a energia de um gerador. E a maior parte das empresas está migrando para a energia limpa e deixando de comprar de fontes fósseis.
Fonte: Folha de S. Paulo
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