Em uma importante vitória para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do novo arcabouço fiscal na noite desta terça-feira (23) por 372 votos a 108.
O placar expressivo mostra uma ampla folga em relação ao mínimo de 257 votos que o governo precisava reunir para a aprovação de um projeto de lei complementar. Na semana passada, a votação da urgência já havia reunido 367 votos.
“A demonstração do painel, tanto da urgência quanto do mérito, demonstra que era um texto equilibrado. Tanto que posições mais à direita e à esquerda convergiram em votar determinadas matérias”, disse o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
O novo arcabouço fiscal vai substituir o atual teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas à inflação e ainda está em vigor, embora tenha sido driblado nos últimos anos. Para a substituição ser efetivada, porém, a proposta ainda depende de votação de destaques (mudanças no texto), o que está previsto para esta quarta-feira (24), e depois passar pelo Senado Federal. A expectativa de Lira é que os destaques sejam rejeitados.
A aprovação do texto-base do projeto ocorreu após modificações em seu conteúdo, mas ainda assim representa um feito relevante para o governo petista, que amargou derrota recente ao tentar mudar o Marco do Saneamento e enfrenta dificuldades para consolidar uma base de apoio no Congresso Nacional.
O avanço da proposta também é uma vitória para o ministro Fernando Haddad (Fazenda), que precisou enfrentar resistências dentro do próprio PT ao desenho da regra, que combina metas de resultado primário com um limite de crescimento para gastos.
Uma ala do partido defendia uma regra fiscal mais branda, ancorada apenas na meta de primário, mas Haddad fez prevalecer o entendimento de sua equipe sobre a necessidade de manter um teto para as despesas, ainda que mais flexível —com espaço para alta real de gastos, acima da inflação. Mesmo durante as discussões no Congresso, a sigla continuou fazendo críticas ao texto.
Agora, esse modelo é chancelado pela Câmara dos Deputados, com votos favoráveis do próprio PT e também de siglas de centro como PP, MDB e PSD. Duas legendas da base aliada, PSOL e Rede, orientaram contra o texto. Já o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro liberou a bancada.
Segundo Lira, a votação desta terça não representa a base do governo, mas sinaliza um avanço. “É uma evolução, estamos trabalhando para que isso [a base] se concretize”, disse.
Pela regra proposta, o crescimento do limite de gasto do ano seguinte deve equivaler a 70% da variação da receita em 12 meses acumulados até junho do ano anterior, já descontada a inflação, desde que respeitado o intervalo de 0,6% a 2,5%. Na prática, esses são o piso e o teto de avanço das despesas, independentemente do quadro econômico do país.
Além disso, o governo precisa buscar uma meta de resultado primário, que é obtida a partir da diferença entre receitas e despesas. O governo diz buscar um déficit de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) neste ano e pretende alcançar superávit de 1% do PIB em 2026.
Caso a meta seja descumprida, a proporção de alta das despesas em relação à arrecadação cai a 50%, até a retomada da trajetória de resultados dentro do esperado.
As linhas gerais da proposta foram mantidas pela Câmara, mas os ajustes no texto seguiram até poucas horas antes da votação.
APÓS CRÍTICAS, RELATOR CONDICIONA GASTO EXTRA A AUMENTO DE RECEITAS
O relator, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), havia incluído na semana passada um dispositivo que fixava o crescimento das despesas em 2024 no teto de 2,5%, o que foi visto por economistas do mercado como uma manobra para gastar mais. Esta e outra mudança (focada na inflação usada para corrigir o limite) resultariam, juntas, em um espaço extra de até R$ 82 bilhões.
O número foi contestado por Haddad e Cajado, mas o ruído gerado levou o relator a ajustar o texto.
“Vamos fazer um mix entre o que estava no texto original e uma possibilidade. O texto original previa o crescimento de 1,12% pelos cálculos que o próprio governo forneceu”, disse Cajado após reunião com lideranças para selar o acordo.
“[O governo] Vai poder utilizar, do que crescer, entre o ano de 2023 e 2024, até 70% no limite de 2,5%. Ficou um meio-termo para desfazer aquele mal-entendido de que o relatório estava colocando R$ 80 bilhões, R$ 42 bilhões [de gasto extra]”, afirmou.
O parecer de Cajado prevê que a LOA (Lei Orçamentária Anual) de 2024 será elaborada sob a regra dos 70% da alta das receitas em 12 meses até junho de 2023, mas o governo poderá fazer um ajuste no ano que vem, com base na expectativa de crescimento real das receitas em 2024.
O texto autoriza o governo a calcular, em maio de 2024 (quando o governo divulga a segunda avaliação bimestral do Orçamento), uma estimativa de alta real da arrecadação em relação a 2023 e aplicar a proporção de 70%. Se isso resultar num número maior do que o que corrigiu o limite de gastos, a equipe econômica poderá abrir novos créditos em valor equivalente.
Na prática, a nova versão permite que a arrecadação extra em 2024 abra espaço para mais gastos no ano que vem.
A despesa adicional também poderá ser incorporada à base de cálculo para 2025 e anos seguintes, com uma exceção: se ao fim de 2024 o ganho esperado na arrecadação se frustrar —levando o limite de despesa crescer acima de 70% da alta da arrecadação—, os créditos excedentes serão descontados do limite de 2025. O valor a mais também será retirado da base de cálculo dos anos seguintes.
Cajado reconheceu que a autorização para o governo ampliar gastos com base numa estimativa de arrecadação contraria o intuito de seu parecer, que buscou fixar os parâmetros da regra e atrelar seu funcionamento a dados já observados. No entanto, ele disse que “foi o acordo possível”.
“Se por acaso houver um erro [na estimativa], o governo terá de descontar em dobro em 2025”, afirmou.
A mudança representou uma concessão à equipe de Haddad, que desde a apresentação inicial do arcabouço mantinha uma expectativa de alta real dos gastos próxima ao teto de 2,5% no ano que vem. No decorrer das negociações, Cajado retirou algumas receitas extraordinárias da base de cálculo da regra, o que comprometeria essa projeção. O pedido do governo era por uma expansão mais generosa dos gastos no primeiro ano da norma.
No entanto, esse artigo em específico foi alvo de um destaque do PL e ainda precisa ser validado pelo plenário em votação separada.
Os partidos de centro, por outro lado, trabalharam para endurecer a regra, que no desenho original não continha punições para o caso de o governo descumprir a meta de resultado primário.
PROIBIÇÃO DE CONCURSOS E DE AUMENTOS PARA SERVIDORES SÃO GATILHOS PARA AJUSTAR DESPESAS
Cajado incluiu em seu parecer uma série de gatilhos automáticos para ajustar as despesas em caso de estouro da meta de primário. Entre as medidas estão a proibição de concursos públicos e de aumentos para servidores.
A política de valorização do salário mínimo, porém, ficará blindada desses mecanismos, a pedido de Lula.
No primeiro ano de descumprimento da meta, o governo não poderá criar novos cargos, ampliar auxílios, vantagens, criar novas despesas obrigatórias e conceder novos incentivos fiscais.
Também ficará proibida a adoção de medida que implique aumento de despesa obrigatória acima da inflação —exceto no caso do salário mínimo, que poderá seguir a política de valorização, que prevê alta real pelo PIB de dois anos antes.
Se a meta ainda assim for descumprida pelo segundo ano seguido, entram em cena outras medidas de ajuste, que proíbem a concessão de aumentos salariais a servidores e realização de concursos públicos.
A inclusão dos gatilhos foi alvo de um destaque apresentado por partidos da base governista: PSOL e Rede. Em votação separada, porém, os parlamentares deram um apoio ainda mais expressivo a essa alteração. Foram 429 votos a 20 em favor dessas sanções.
Em outro ajuste para tornar o arcabouço mais rígido, o texto obriga o governo a contingenciar despesas, caso haja frustração de receitas ou aumento de outros gastos que ameace o cumprimento da meta fiscal no exercício. Esta seria uma medida prudencial adotada pelo gestor para tentar evitar o estouro da meta.
Inicialmente, o governo queria que a adoção dessa providência fosse opcional, numa flexibilização em relação ao que manda a versão atual da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O Congresso não aceitou essa proposta e restabeleceu o contingenciamento, mas estipulou um limite de 25% do valor previsto no Orçamento para as despesas discricionárias —que incluem custeio e investimentos.
O texto ainda determina que o contingenciamento precisa ser proporcional entre as diferentes rubricas. Na prática, isso evita que o aperto recaia apenas sobre os investimentos, como já ocorreu no passado.
FUNDEB FICA DENTRO DO ARCABOUÇO, E GOVERNISTAS CRITICAM
Motivo de polêmica nos últimos dias, a inclusão dos gastos com o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da Valorização dos Profissionais da Educação) sob o alcance do limite do arcabouço já foi validada pelos deputados.
Governistas defenderam a exclusão o Fundeb do limite sob o argumento de que educação é investimento. O próprio secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, disse que a decisão de incluir esses repasses sob o arcabouço poderia representar uma restrição do espaço fiscal no médio prazo.
No entanto, nenhum destaque nesse sentido foi apresentado em plenário. Isso significa que o texto já está validado pelo plenário da Câmara.
O arcabouço fiscal não altera as regras da complementação paga pela União ao Fundeb. Isso significa que o percentual continuará subindo até 23% do total de recursos do fundo até 2026, como aprovado na emenda constitucional 108/2020, e se manterá nesse patamar depois disso.
Cajado restringiu a lista proposta pelo governo de despesas que vão ficar fora do novo limite de gastos a ser seguido pelo Executivo. Além do Fundeb, despesas com aportes em empresas estatais não dependentes (que usam receitas próprias para bancar despesas operacionais) e repasses a estados e municípios para bancar o piso da enfermagem ficarão sob o novo teto de despesas.
Na prática, isso significa que essas políticas disputarão espaço no Orçamento com outros programas, e seu eventual crescimento mais acelerado pode exigir cortes em outras áreas —o que funciona como um incentivo para que o governo as mantenha sob controle.
DESTAQUE TENTA EXCLUIR A REPASSES DE FUNDO DO DF DO LIMITE DE DESPESAS
Há um destaque, porém, para tentar excluir do limite os repasses ao FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal), abastecido pela União com recursos de tributos pagos por toda a população. O dinheiro do fundo financia gastos do DF com segurança pública e outras políticas, sob a justificativa de que o governo distrital deve zelar pelo espaço ocupado pela administração federal.
Esse ponto enfrenta resistências de parlamentares do Distrito Federal e também da bancada ligada à área de segurança pública.
Pelo parecer de Cajado, o fundo do DF teria inclusive sua regra de correção modificada, caso o parecer de Cajado seja aprovado. Hoje, o valor é corrigido pela variação anual da RCL (receita corrente líquida), ou seja, quanto mais a União arrecada, maiores são os repasses para o Distrito Federal.
Sob essa regra, o montante cresceu de R$ 18,2 bilhões em 2011 para uma previsão de R$ 23,6 bilhões neste ano —em cifras já atualizadas pela inflação. A proposta do relator é que o crescimento dos repasses ao FCDF acompanhe o percentual de correção do limite geral de gastos (0,6% a 2,5% ao ano).
TRAMITAÇÃO
O que acontece agora, com a aprovação do texto-base pela Câmara?
A Casa vai terminar de votar os destaques ao texto nesta quarta (24), e votar a versão final do projeto, que segue então para o Senado, se aprovada.
Caso não haja mudanças no Senado, o texto vai à sanção presidencial.
No entanto, se os senadores fizerem modificações no texto, o projeto retorna para a Câmara, que terá palavra final —os deputados podem acatar as mudanças dos senadores ou restituir o texto originalmente aprovado na Câmara. Nesse caso, após a nova votação o texto é remetido à sanção do presidente da República.
O que é preciso para a proposta ser aprovada no Congresso?
Projetos de lei complementar exigem maioria absoluta de votos favoráveis, isto é, mais da metade dos integrantes de cada Casa. Isso significa ao menos 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado.
Depois de aprovada pelo Congresso, o que acontece com a proposta?
O chefe do Executivo tem 15 dias úteis para sancionar o projeto integral ou com vetos parciais em alguns dispositivos, ou ainda vetá-lo totalmente. Todos os vetos passam por posterior validação do Congresso, que pode derrubá-los mediante maioria absoluta de deputados (257) e senadores (41).
Fonte: Folha de S. Paulo
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