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Dez anos após Paris, governos planejam produzir mais do que o dobro de combustível fóssil permitido pelo acordo

Dados de 20 países mostram 120% mais exploração em 2030 do que pressupõe o limiar de 1,5°C de aquecimento global; Metas climáticas e discursos políticos contrastam com corrida por petróleo, que já promete produzir ativos encalhados

postado Maria Clara

“Planos governamentais de todo o mundo indicam que a produção de combustíveis fósseis em 2030 deve ser o dobro do que seria permitido para cumprir o Acordo de Paris.” Assim a Folha noticiou o resultado de um importante relatório sobre o assunto em 2023. Dois anos depois, a situação é ainda pior: a produção planejada agora é mais que o dobro do permitido pela meta e nada indica que a situação vá melhorar.

A edição 2025 do relatório de Lacuna de Produção, elaborado pelo Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI, na sigla em inglês), pela Climate Analytics e pelo Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (IISD) mostra que o estouro de 110% nos planos de produção em relação ao limite correspondente a um aquecimento de 1,5°C se transformou agora em 120%.

Se o parâmetro for um aquecimento de 2°C em relação à era pré-industrial, espécie de teto estabelecido pelo Acordo de Paris, o excedente de extração previsto foi de 69% para 77%.

“Em 2023, os governos reconheceram formalmente a necessidade de abandonar os combustíveis fósseis para mitigar as mudanças climáticas”, afirma Derik Broekhoff, coordenador do relatório e diretor da SEI, fazendo referência à COP28. “Mas, como nosso trabalho deixa claro, embora muitos países tenham se comprometido com uma transição para a energia limpa, muitos outros parecem estar presos a um modelo dependente de combustíveis fósseis, planejando uma produção ainda maior do que há dois anos.”

O retrato que sai da análise das pretensões dos 20 maiores produtores de carvão, petróleo e gás do planeta, responsáveis por 80% da extração atual de combustíveis fósseis, não parece muito promissor às vésperas do aniversário de dez anos do Acordo de Paris. Em dezembro de 2015, na COP21, 195 países e a União Europeia concordaram em reduzir a produção global de carbono “o mais rápido possível”, com o intuito de manter o aquecimento global “bem abaixo de 2°C”.

É o que ainda consta de discursos e das metas estabelecidas pela maioria dos países abordados no estudo. O Brasil, que recebe a COP30 em novembro e divulgou sua meta climática de 2035 com antecedência no ano passado (redução de emissões de 59 a 67% em relação aos níveis de 2005), é um dos tantos mal exemplos citados no relatório.

A estimativa de produção nacional, do levantamento de 2023 para o atual, saltou 4,1 exajoules no caso do petróleo e 0,9 exajoules no de gás. Um exajoule é um quintilhão de joules, algo que soa bastante abstrato. Uma comparação com o resto da lista ajuda: o número brasileiro só é superado no estudo pelos novos 4,2 EJ de petróleo da Arábia Saudita e os 7,3 de carvão da Índia. “É o pré-sal. Nos últimos 20 anos, o Brasil se destaca por isso e dá esses saltos”, diz Roberto Schaeffer, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ainda que inundações, ondas de calor e queimadas recordes indiquem um relógio acelerado para o aquecimento global, o especialista em energia revela uma outra contagem de tempo quando os ponteiros seguem a produção de combustíveis fósseis. “Se o Brasil não fizer mais nada, não iniciar nenhuma extração de petróleo novo, estará atingindo o pico de produção em 2035”, conta Schaeffer, que participou da elaboração do relatório.

O problema é que nem o Brasil nem o mundo chegará a 2050 sem produzir o produto. O que a maioria dos países projeta em 25 anos é o chamado net zero, zerar as emissões líquidas de carbono. “Serão ainda 50 milhões de barris por dia, metade da demanda atual, mas a discussão refletida no relatório é quem estará produzindo isso à época.”

Poderia ser o Brasil, como almejam o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, outros integrantes do governo Lula e uma frente suprapartidária no Congresso. “Uma coisa é produzir o petróleo que a gente já achou, pré-sal, por exemplo. Outra coisa é se faz sentido você ir para uma nova fronteira. Eu acho que não faz”, afirma Schaeffer.

Outros relógios entram na equação do acadêmico. A economicidade de um campo de petróleo é de 30 anos, ou seja, ele precisa ser explorado por esse período de tempo para ser economicamente viável; uma nova exploração, como a da foz do Amazonas, por exemplo, leva de dez a 15 anos para se tornar realidade; e o tipo de petróleo da região demandaria novas refinarias, que levam outros dez anos para serem erguidas e ao menos 30 para se pagarem.

“A Petrobras vai produzir esse petróleo até 2070? Tem que combinar com os russos, e são muitos os russos nessa história.”

Em um mundo ideal, reflete Schaeffer, os países discutiriam quem deveria assumir essa produção residual, que ainda será muito importante. Por exemplo, um navio normalmente opera por 40 anos anos, e a média de idade da frota atual no mundo não chega a 15 anos; algo parecido ocorre com a aviação, com 30 anos de vida útil e idade média de dez. “Nada disso vai ser movido a energia solar, eólica, nuclear. Esquece.”

Porém, como os países não conseguem concordar nem com as metas climáticas, o risco de haver os chamados “stranded assets”, ativos encalhados, é enorme. “Nenhum político quer pensar nisso, assim como ninguém quer pensar em reforma da Previdência, nessas coisas que só terão efeito prático para o cidadão em décadas.”

“É frustrante ver dinheiro público sendo desperdiçado, mas intolerável mesmo é pensar nos custos humanos e ambientais desses planos de expansão fóssil, especialmente para as populações mais vulneráveis”, declara Neil Grant, analista sênior da Climate Analytics e um dos autores do relatório.

“Dez anos após Paris, as energias renováveis estão muito à frente do pelotão. Em vez de entrarem na corrida, os governos estão retrocedendo em direção ao passado fóssil.”

Dos 20 países pesquisados, 17 planejam aumentar a produção de ao menos um tipo de combustível, grupo que inclui o Brasil. Por outro lado, seis nações já alinharam sua extração às respectivas metas nacionais, uma pequena melhora em relação ao relatório de 2023, quando apenas quatro países concatenavam discurso e ação.

Uma conclusão óbvia da pesquisa é que o mundo precisará de uma redução bem mais drástica e rápida de emissões para atender aos parâmetros acordados em Paris e ao consenso científico de que o aquecimento acima de 2°C terá consequências severas para o planeta. “Sem esses compromissos, adiar ainda mais as ações irá fixar emissões adicionais e agravar os impactos climáticos”, afirma Emily Ghosh, especialista da SEI e também coordenadora do estudo.

“Já está claro que o mundo precisará de emissões líquidas negativas”, diz Schaeffer, sobre a perspectiva de o planeta ter que capturar mais carbono do que o produzido para baixar os termômetros. “O Brasil tem chances aí, seja em reflorestamento e aflorestamento [plantar novas florestas] seja nos biocombustíveis com captura de carbono nas refinarias.”

Incensadas por startups e empresas do setor petrolífero, as tecnologias de captura de carbono direto da atmosfera parecem inviáveis no longo prazo.

“A situação não é boa”, resume o professor.

por José Henrique Mariante

Fonte: Folha

www.contec.org.br

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