“A Unimed Nacional valoriza a transparência em todas as suas relações. Comunicamos, portanto, a rescisão do plano de saúde celebrado com a sua empresa, encerrando a vigência do seu plano no dia 27 de junho de 2023.”
O bibliotecário Sadrac Leite Silva, 47, não entendeu nada ao receber a mensagem da operadora de saúde no último dia 28 de abril. Ele e a esposa, a funcionária pública Marilene Ribeiro Barbosa, pagavam em dia a mensalidade do plano da família, no valor de R$ 1.458,68, especialmente por causa do filho mais velho, Leonardo, de 8 anos.
Diagnosticado com craniofaringioma, um tipo de tumor raro que atinge o sistema nervoso central, o menino sente fortes dores de cabeça, dificuldades de visão e problemas hormonais. Em abril, Leonardo passou pela terceira cirurgia para retirada do tumor, que apresentou recidivas depois de ter sido identificado pela primeira vez, em 2021.
A médica oncologista que atende Leonardo indicou urgência no tratamento com radioterapia após a terceira cirurgia, a fim de preservar as células sãs do cérebro e impedir que uma nova recidiva do câncer atingisse o nervo óptico, causando a perda da visão da criança. Mas a Unimed negou o tratamento. E, na sequência, cancelou o plano da família.
Na mensagem em que informou o cancelamento, a operadora ofereceu “planos de assistência à saúde na modalidade individual ou familiar, sem necessidade de cumprimento de novos prazos de carência, disponíveis para cidades do estado da Bahia“, embora a família more no extremo oeste de São Paulo.
O caso da família Silva está longe de ser uma exceção, num momento em que os planos de saúde vivem uma crise. Em 2022, o setor registrou prejuízo operacional de R$ 11,5 bilhões, o pior resultado desde o começo da série histórica, em 2001.
Esse número se refere apenas aos valores obtidos com os serviços de saúde em si. Quando se consideram os ganhos com operações financeiras, as operadoras tiveram lucro líquido de R$ 2,5 milhões. O valor representa 0,001% das receitas totais, que somaram R$ 237,6 bilhões.
Nas últimas semanas, centenas de convênios têm sido cancelados unilateralmente por operadoras de planos de saúde, no que tem sido visto por advogados e autoridades como uma possível forma de “limpar” a base dos clientes mais custosos.
Questionadas pela Folha, as operadoras de saúde dizem que estão dentro da lei, porque a rescisão unilateral está prevista em contrato. A posição é compartilhada pela própria ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), autarquia responsável pela fiscalização das operadoras de planos de saúde e pela regulação do mercado.
Só ao gabinete da deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP) chegaram 192 denúncias desde o final de abril até a noite de quinta-feira (18) –cerca de 90% delas envolvendo a Unimed Nacional. O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) acaba de instaurar inquérito para investigar os casos da empresa. Os promotores ainda podem abrir inquérito sobre casos de outras operadoras.
Em segundo lugar em número de denúncias vem o Bradesco Saúde, com 5% dos casos. Outras ocorrências se dividem entre mais quatro companhias, como Notre Dame, SulAmérica, Interclínica e São Cristóvão.
Boa parte das denúncias recebidas pela deputada –fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que defende os direitos de pessoas com deficiência– envolve crianças com autismo, câncer e epilepsia, entre outros transtornos e doenças.
No escritório Vilhena Silva Advogados, de São Paulo, especialista no direito à saúde, foram cerca de 20 casos só este ano envolvendo cancelamento unilateral por parte dos planos de saúde –a maior parte deles da Allianz. Como base de comparação, nos primeiros quatro meses do ano passado, haviam sido apenas 3.
PLANOS EMPRESARIAIS TÊM MENOS GARANTIAS
“É uma prática abusiva”, diz o advogado Rafael Robba, do Vilhena Silva Advogados. “Os contratos coletivos por adesão não têm a mesma proteção que os planos individuais e familiares no Brasil”. Estes últimos, segundo ele, impedem que os planos cancelem o contrato sem motivo, especialmente se o paciente estiver em tratamento.
“Mas os planos individuais e familiares sumiram do mercado, os que restaram são caríssimos, as operadoras oferecem em peso os coletivos, que podem ser empresariais ou por adesão [contratados por entidades de classe]. Nestes, é permitida a rescisão injustificada, com aviso prévio de 60 dias”, diz.
Se alguém da família conta com uma inscrição empresarial, um CNPJ, é comum que o plano familiar seja contratado como empresarial, na modalidade PME (pequena e média empresa).
Para a advogada Giselle Tapai, especialista em direito do consumidor com foco na saúde, há um evidente desequilíbrio de poder entre as partes. “As pessoas são empurradas para um falso empresarial, um plano precário, que conta com cláusulas abusivas e reajustes anuais absurdos, de 80% ou mais”, afirma.
Com Sadrac Silva foi assim. “Eu pagava um plano por adesão que estava saindo bem mais caro, por volta de R$ 2.000. Segui orientação do corretor de seguros, que me sugeriu abrir uma empresa como microempreendedor individual [MEI], para conseguir um plano mais em conta, por volta de R$ 1.400”, diz. “Mas existe uma pegadinha aí, porque o plano empresarial nos deixa mais frágeis na negociação com a operadora.”
Silva entrou com ação contra Unimed e, no último dia 11, conseguiu que empresa cumprisse decisão liminar de manter o tratamento de Leonardo. Mas o cancelamento do plano, previsto para junho, continua.
Segundo Giselle Tapai, a experiência mostra que não basta reclamar junto à ANS, pois nada muda para as operadoras. “O consumidor é obrigado a procurar o Legislativo para ter os seus direitos assegurados”, diz Giselle.
Fonte: Folha de S. Paulo
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