Há dois anos, o Congresso aprovou a reforma da Previdência com regras mais duras para pensões por morte e aposentadorias por invalidez. Três meses depois, a covid chegou ao Brasil, e a mudança atingiu em cheio a renda de famílias de mortos e de pessoas que ficaram incapacitadas para o trabalho.
Nas pensões por morte não houve regra de transição. Morrer em 12 de novembro de 2019 significava deixar uma pensão de 100% do salário de contribuição para os dependentes. Morrer no dia seguinte já poderia reduzir a pensão em mais de 60%. O mesmo vale para aposentadorias por invalidez (incapacidade permanente) decorrente de sequelas da covid.
Levantamento do UOL a partir de dados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) revela que o número de pensões previdenciárias disparou nos últimos três anos. De janeiro a setembro de 2021 foram concedidas 338 mil pensões para famílias trabalhadores urbanos, 62% a mais do que no mesmo período de 2019 (209 mil).
Não há detalhes sobre a causa da morte que levou à concessão da pensão. Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que parte do aumento pode ser atribuída a pedidos represados, mas que um crescimento deste porte se deve principalmente à covid, que já matou mais de 610 mil pessoas no Brasil (68% delas em 2021).
Regra mudou no meio do jogo
Pensionistas foram prejudicados de um dia para o outro, sem transição.
O valor da pensão por morte equivale a quanto o trabalhador teria direito em caso de aposentadoria por invalidez. Se já estava aposentado ao morrer, a pensão é a própria aposentadoria.
Antes da reforma, o cálculo excluía até 20% dos salários de contribuição, o que permitia chegar a uma média mais alta. Essa média, limitada ao teto da Previdência (hoje R$ 6.433,57), era a aposentadoria para sequelados que não podem mais trabalhar, ou a pensão por morte a ser dividida pelos dependentes do trabalhador.
A partir da reforma, acabou a possibilidade de se excluir até 20% dos salários mais baixos. Além disso, o INSS só paga pensão de 100% da média se homens contribuírem por 40 anos e mulheres por 35 anos. Abaixo disso, o ganho é proporcional. Homem que contribuiu até 20 anos e mulher até 15 anos ganham só 60%.
No caso da pensão por morte, os cortes não param por aí. Esse valor é novamente reduzido para 60% se houver apenas um dependente, 70% se houver dois, 80% se houver três, ou 90% se houver quatro dependentes. Só a família com cinco dependentes receberá a pensão sem essa última etapa de redução.
Em um exemplo hipotético, uma trabalhadora que contribuiu por quase 15 anos com salário médio de R$ 3.500 e morreu antes da reforma deixou uma pensão de R$ 3.500 para o único filho dependente. Se a morte fosse após a reforma, a média de salário cai para R$ 3.100 (porque não exclui os piores salários da carreira), e a pensão por morte para o único filho ficaria em R$ 1.116 —uma diminuição de 68% em relação à regra antiga.
A aposentadoria por invalidez ou pensão por morte ainda pode ser 100% da média do salário de contribuição se a doença, o acidente ou a morte decorrerem do próprio trabalho. Mas essa é uma situação quase impossível de se comprovar em casos de covid, que pode ser contraída em diversos lugares e circunstâncias.
Valores cada vez menores
Média de pensões e aposentadorias por invalidez se aproxima do salário mínimo.
Em valores corrigidos pelo INPC (índice de inflação que baliza o salário mínimo e benefícios previdenciários), a média das aposentadorias por invalidez concedidas de janeiro a setembro de 2021 é R$ 1.397 —24% menor do que a média do mesmo período de 2019. As pensões por mortes tiveram valor médio de R$ 1.893 —9% menor na mesma comparação.
A queda no valor médio só não é mais expressiva porque, se o cálculo final levar a um valor abaixo do salário mínimo, o benefício será de um salário mínimo (R$ 1.100 hoje). Na prática, a tendência é que a reforma empurre a média cada vez mais para baixo, prejudicando principalmente quem passou anos contribuindo sobre um salário maior.
Pedro Pannuti, especialista em direito previdenciário, sócio do escritório Ziccarelli & Advogados Associados
Gera revolta, diz defensora que perdeu o marido
Em 9 de abril de 2021, depois de nove dias internado, o bancário Moisés Santos morreu de covid. Deixou um filho de 7 anos, Nathan, e a esposa, Michelle Leite, de 40. Foram 22 anos contribuindo com o valor máximo, mas a pensão calculada pelo INSS foi de R$ 2.455.
“Isso me gera revolta e indignação. Viola o princípio da confiança. Ele recolheu um valor para se proteger e proteger a família dele”, diz a viúva.
Por coincidência, Michelle Leite é defensora pública no Distrito Federal e atua na área previdenciária. Ela milita pela revisão das regras de pensão por morte e de aposentadoria por invalidez.
“No meu caso, sou defensora, tenho renda. Mas imagine quando a pensão é a única renda da família, da viúva, do órfão? É um impacto devastador”, diz.
Michelle Leite, defensora pública
Há projetos no Congresso para distribuir pensões às famílias de vítimas fatais da covid. Essa é uma das propostas feitas no relatório da CPI.
Segundo um levantamento de cartórios de registro civil, pelo menos 12 mil crianças de até seis anos de idade ficaram órfãs de um dos pais vitimados pela covid-19 no Brasil, entre 16 de março de 2020 e 24 de setembro de 2021.
Existem também projetos de lei para acabar com a carência na aposentadorias por invalidez para trabalhadores com sequelas da covid. Atualmente, a pessoa só pode se aposentar por invalidez se tiver contribuído por 12 meses —exceto se a doença for contraída no trabalho, algo complicado de comprovar.
Viúvas se decepcionam com valor da pensão
Aparecida Menchon, 57, perdeu para a covid o marido Fernando Gonçalves, 48. Técnico de ferramentas, Fernando contribuía para o INSS com um salário de R$ 1.600. Com as regras pós-reforma, a pensão que deixou caiu para um salário mínimo.
“Insatisfeita não fiquei, porque estou recebendo alguma coisa. Mas eu imaginava que ia receber o salário integral”, diz a viúva que vive em São Paulo. “Minha renda é só a pensão, que uso para mim e para ajudar com as duas netas que moram na mesma casa que eu.”
Dalva Paré, 63, também ficou viúva durante a pandemia. Seu marido trabalhava no centro de informática da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas-SP) e morreu em 10 de dezembro de 2020. Apesar de ganhar cerca de R$ 4.400, a pensão foi reduzida para R$ 2.700.
“Eu não sabia que iam descontar tanto, fico indignada. Como a maioria dos brasileiros [que perderam alguém], senti na pele o que é ganhar uma pensão nesse valor”, afirma Dalva.
Embora esteja aposentada (ganha um salário mínimo além da pensão), ela agora pensa em voltar a trabalhar para dar conta de todas as despesas, porque gasta mais de R$ 1.000 só com plano de saúde. “Nesta idade, não posso deixar de pagar”, diz. Fonte: UOL
Diretoria Executiva da CONTEC