Foi nos corredores de um supermercado, com uma filha no carrinho, outra ao lado, a cabeça na lista de compras e de tarefas, e o celular na mão, lotado de mensagens de trabalho, que Vera Nunes de Santana, 46, simplesmente “bugou”.
“Eu apaguei. Fiquei paralisada. Precisaram chamar o gerente do mercado para me ajudar e, de lá, fui para o hospital”, conta ela. A curadora e produtora cultural saiu com uma guia médica que recomendava, por ora, apenas descanso. Vera estava esgotada.
Ela não está sozinha. Estudos internacionais apontam que a prevalência de esgotamento mental, também conhecido como síndrome de burnout, é 25% maior entre as mulheres.
De acordo com o documento, 86% das brasileiras consideram ter muita carga de responsabilidade, e 48% sofrem com uma situação financeira apertada, num contexto em que 28% se declaram como única ou principal provedora de seu lar e que 57% daquelas entre 36 a 55 anos são responsáveis pelo cuidado direto de alguém.
“Estamos sobrecarregadas, e existe uma normalização dessa sobrecarga e dos problemas que ela causa”, avalia Vera, pelo retrovisor. “A gente é criada para ser eficiente na maternidade, no trabalho, na casa, na relação afetiva e sexual. E, além disso, brilhante, gostosa, estudiosa, boa amiga, boa filha… Uma espécie de supermulher, que não existe.”
A pesquisa entrevistou 1.078 mulheres de 18 a 65 anos de todo o país e aponta que metade das brasileiras se sente ansiosa (55%) e estressada (49%), mas também irritada (39%), exausta (28%), com baixa autoestima (28%) e triste (25%).
Além disso, 45% já tiveram diagnóstico de ansiedade, depressão ou outros transtornos mentais, segundo o estudo. E 68% fez algum acompanhamento médico.
Foi o caso de Vera, que procurou ajuda depois do episódio do supermercado e recebeu o diagnóstico de síndrome do pânico. Passou por tratamento com medicamentos e incluiu a terapia na rotina.
“Não tive mais piripaques. Passei a priorizar minha saúde física e mental. Quando fico estressada, paro tudo, mas o julgamento em cima disso é pesadíssimo”, avalia.
Pouco tempo depois de tirar uma semana de licença médica, Vera foi desligada do trabalho.
“A sensação que a gente fica é de que somos uma máquina que, quando dá um pequeno sinal de erro, é descartada”, desabafa.
O desemprego, que atinge mais mulheres que homens no Brasil (10,8% contra 7,2% entre homens), e o processo de feminização da pobreza deram urgência às pressões financeiras, apontadas pelo estudo da Think Olga como a principal fonte de insatisfação e sofrimento para mulheres brasileiras.
Entre mulheres negras, que são maioria entre as chefes de família, entre as mães solo e entre as desempregadas, a situação é ainda mais grave. Não à toa, mais mulheres negras (54%) do que brancas (39%) disseram estar insatisfeitas com sua situação financeira.
“Neste contexto, a questão do cuidado fica muito mais difícil porque não é possível contratar alguém para essa tarefa, e a pressão aumenta, enquanto a maioria das mulheres brancas e de classe média alta podem pagar por uma rede de apoio para os cuidados com crianças e pessoas idosas”, avalia Nana Lima, diretora do Think Olga.
Para a psiquiatra clínica e psicanalista Juliana Belo Diniz, o bem-estar das mulheres está atravessado por questões sociais, culturais e históricas que não serão resolvidas apenas com políticas públicas de saúde mental.
“As reações das mulheres às condições que elas vivem não são patológicas, mas algo esperado para esse contexto. Temos uma questão social e humanitária porque as mulheres foram assumindo novas responsabilidades sem abandonar seus papéis tradicionais”, explica ela. “A psiquiatria e a psicologia não vão resolver esse problema. Precisamos trazê-lo para a discussão pública.”
Outros estudos já apontaram que a saúde mental feminina está mais pressionada do que a masculina. A taxa de mulheres brasileiras que já tiveram diagnóstico de ansiedade (27%) e depressão (20%) é o dobro da registrada entre os homens (14% e 10%, respectivamente), segundo pesquisa Datafolha recente.
Mesmo em relação aos dados globais, as mulheres do Brasil aparecem com saúde mental mais comprometida. Enquanto a taxa de homens brasileiros com transtornos mentais ou por uso de substância é 21% maior que a taxa masculina global, entre as brasileiras ela é 42% mais alta que a média feminina no mundo.
Durante a pandemia, a situação se agravou, e mulheres representaram 67% dos novos casos de transtorno depressivo e 68% dos novos casos de transtorno de ansiedade em 2020, segundo estudo publicado na revista Lancet.
“Se está aumentando a prevalência de certos transtornos entre mulheres, não é porque o cérebro delas está ficando mais doente, mas porque as pressões a que estão submetidas não estão permitindo a elas encontrar saídas viáveis”, avalia a psiquiatra Diniz.
As mulheres que procuram seu consultório, afirma, muitas vezes estão em busca de ajuda porque querem continuar aguentando essa sobrecarga. “Elas acham que precisam segurar as pontas até o final porque são a última fonte de resistência da estrutura familiar”, explica. “E o nosso trabalho é muitas vezes abrir espaço para elas admitirem que não estão aguentando.”
Para aliviar uma parte dessas pressões, Vera conta que conseguiu distribuir tarefas que eram só sua responsabilidade. “Enquanto estamos fazendo reuniões e queremos mudar o mundo, precisamos nos preocupar se a roupa não está mofando dentro da máquina de lavar, se a criança está bem na escola, se tem comida na geladeira, se a casa está limpa”, afirma.
“A carga mental das mulheres é surreal. E o homem ainda é altamente poupado disso. Mas, agora, combinamos que é meu companheiro o responsável pela faxina e compra desses produtos”, respira, diante de, ao menos, esse livramento.
O desequilíbrio entre homens e mulheres na divisão do trabalho doméstico e parental e nos cuidados com outras pessoas é um dos fatores que pressiona desproporcionalmente as mulheres. Elas dedicam, em média, 21,4 horas semanais às tarefas domésticas enquanto eles, quase a metade disso (11 horas).
A sobrecarga de trabalho doméstico e a jornada excessiva de trabalho foi a segunda causa de descontentamento mais apontada por mulheres na pesquisa do Think Olga.
“Os resultados da pesquisa reforçaram o que já sabemos sobre a exaustão das mulheres e o trabalho feminino, e sua dupla ou tripla jornada. É tanta ansiedade, que o corpo pifa”, afirma Jaqueline Gomes de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
“Sob um ideário de heroína, mulheres acumulam o trabalho fora de casa, em que ganham menos do que os homens, com as tarefas domésticas, que não são reconhecidas como trabalho e, portanto, não são remuneradas.”
Outros fatores apontados como causa de sofrimento pelas brasileiras foram a pressão estética (26%), a pressão familiar ou da comunidade para que façam algo que não querem (21%), o machismo (21%) e o medo constante de sofrer violência (16%).
Diagnosticada com depressão há dez anos, a bombeiro civil Amanda Nunes de Oliveira, 29, percebeu, durante as sessões de terapia, que a criação em uma família cristã de doutrina rígida, cheia de restrições, foi fonte de muito sofrimento.
“Sempre fui muito julgada porque ia na contramão da igreja e do que meu pai dizia que não era para fazer. E apanhava muito por causa disso”, diz.
Amanda conta ter enfrentado preconceitos por ter um corpo fora de padrão, por ser negra e ter uma orientação sexual não heteronormativa. “Não é fácil ser mulher, gorda, lésbica e preta. E tudo isso contribuiu para a minha saúde mental se deteriorar”, avalia.
Para Nana Lima, diretora do Think Olga, a pesquisa mostra que “todos esses fatores estão interconectados e vão se acumulando sobre as mulheres, gerando uma insatisfação feminina muito alta”.
A solução, diz, passa por políticas públicas que enfrentem as causas da sobrecarga e do sofrimento das mulheres. “Que tipo de sociedade nós estamos construindo quando as mulheres estão tão abaladas e desesperançosas?”, questiona a diretora do Think Olga.
Fonte: Folha de S. Paulo
www.contec.org.br